Acorda. Havia custado a dormir e agora acordara tão cedo. Há algo de diferente. Uma presença. Abre à janela, o sol mal nascerá. De repente ouve gritos.
– O moinho, o moinho esta a funcionar.
Sai à rua. Todos saem, de pijamas ainda, para verificar. Paralisados. O moinho está a funcionar. Sussurros:
– Como é possível?
– Não há de ser verdade, a menos que…
– A menos o que?
– A menos que ele tenha voltado.
– Tem certeza?
– E aquele moinho há de girar por qualquer outro motivo?
Mais sussurros. A jovem não se contem, corre ate o moinho. No caminho se pergunta o que fará se for verdade. Abre as pesadas portas com dificuldade. O olha por todo o térreo. Sobe no pé direito. Nada, Apenas algumas folhas riscadas, amassadas, queimadas.
– Ola! Tem alguém aqui?
Silêncio. Cortado apenas pelo gemido das engrenagens velhas do moinho.
– Responda! Um grito rouco. Inútil.
A garota sobe as escadas. Cansaço. Chega ao telhado. Apesar da altura, as velas do moinho chegavam mais alto. Os primeiros raios de sol iluminam as colinas ao longo dos campos verdes.
– Ver o nascer do sol entristece-me um pouco, pois ele é a prova de que não dormi durante a bela noite que se seguiu – A moça se vira assustada. Lá está ele. Sentado no para-peito, de costas para ela, a olhar o pequeno vilarejo abaixo de seus pés. Continua sem olhar para ela – Veio me procurar?
A garota não sabe o que dizer. Um ano se passou e não sabe o que dizer a ele. Acaba por não responder, mas por perguntar.
– Porque não me respondeu quando estava chamando-o?
– Porque não ouvi.
– Então como sabe que eu vim o procurar?
– E há de haver outro motivo para vir até aqui?
Novamente não responde, pergunta.
– Porque voltou?
Ele a olha. Seus olhos vermelhos continuam com a mesma cor forte e viva de três anos atrás. Vai ate a garota. Passa a sua mão suavemente nos cabelos dela.
– Tingiu de vermelho escuro há quanto tempo?
– Faz cerca de seis meses que está desta cor.
– Entendo… Ele passa por ela em direção a escada.
– Aonde vai? Pergunta ela.
– A padaria já abriu, tenho fome. Você não vem?
O padeiro, ao vê-lo entrar junto da jovem, abre um sorriso de orelha a orelha.
– Mas não é que os boatos são verdadeiros? Retornas-te para nosso pequeno e humilde vilarejo!
– Pequeno, mas único. E com um enorme coração por me abrigarem, meu velho amigo.
– Fico feliz de recebê-lo novamente aqui depois de tanto tempo.
– Verdade, já faz um certo tempo.
– Sim, um ano. Por onde esteve?
– Pelo mundo.
A garota apenas acompanha a conversa. Pensa em jogar novamente a ele as perguntas que fizera mais cedo e não tivera resposta, mas lembra que teve a mesma ação para com ele.
– Mas diga – disse o padeiro – o que vai querer?
– Ora, o de sempre, meu caro.
O padeiro faz um sinal positivo e sai. Silêncio. Os olhos vermelhos correram pelo ambiente, notando diferenças, trazendo lembranças.
– Onde esteve por este tempo? Perguntou a garota.
– Em vários lugares. Quase todos os lugares. Mas aqui estou novamente. Tomando café nesta padaria, onde eu a encontrei pela primeira vez.
– Sim, estava de noite. Chovendo. A padaria estava a fechar. Você apareceu na porta, com tanto sangue escorrendo de sua cabeça que mau se podia ver seus olhos. Quando o limpamos e o vimos pensamos que estava a sangrar pelos olhos também.
O padeiro voltou com uma xícara de café, um copo d’agua, uma maçã e um pão com manteiga. Pergunto a garota se não gostaria de pedir algo também.
– Comemoração, é por conta da casa.
– Uma xícara de café, por favor.
Tomaram e comeram. Despediram-se do padeiro. Enquanto caminhava o garoto continuou.
– Naquela noite você e o padeiro salvaram a minha vida, e este vilarejo me deu um lar. Diferente de todos os lugares que havia passado antes, as pessoas este vilarejo não tinha medo dos meus olhos. Nem desprezo.
Olhou algumas crianças brincando na única praça do vilarejo. As mães costuravam e conversavam a sombra de uma grande e velha árvore ao centro. Uma das crianças o viu. Acessou gritando.
– Ola de novo, poeta. – O pequeno garoto correu até ele. Puxou-o pela calça – Brinca conosco?
Ele sorriu.
– Claro, mas mais tarde. Tenho que arrumar umas coisas por agora.
– Está bem. Mas vai contar também uma das suas histórias, não é mesmo?
– Vou sim, tenho muitas histórias novas. Mas agora acho melhor voltar para o jogo, senão seus amigos iram vencer.
O pequeno voltou correndo. Os olhos vermelhos ficaram a fitar aquelas crianças por mais alguns minutos.
– Não sabiam quem eu era. Nunca souberam. Mesmo assim me trataram como se tivesse nascido aqui – Disse ele ainda olhando as crianças – E agora, até mesmo as crianças, agem assim e como se eu nunca tivesse saído. Como se eu tivesse saído para comprar leite e voltado dez minutos depois.
– Nunca nos dissera seu nome. Idade. Onde nascerá. Da onde vinha. Para onde ia. O porquê estava naquele estado – Disse a garota. Também olhava para as crianças a brincar – Nunca teve importância quem fora, e sim quem seria. Um poeta. Aquele que contava histórias. Algumas dessas histórias nunca saberemos se foram reais ou não.
Uma suave brisa. Os avermelhados cabelos da garota dançaram ao ritmo da brisa, fazendo a atenção dos olhos vermelhos se voltarem totalmente à beleza da garota.
Uma mão apoiou-se no ombro direito do poeta.
– Andou fugindo do trabalho pesado, não é, seu safado.
Olha quem é e reconhece. Abre um sorriso.
– Mas é claro. Sempre deixava mais difícil para mim. Respondeu.
– Mas você sempre ficava com a melhor parte do cordeiro também. Disse outra voz desta vez da esquerda.
– Acabou que chegou na hora certa novamente. Disse o da direita.
– Amanhã os trigos vão estar no ponto exato para a colheita. Disse o da esquerda.
– E como você tem faltado… Eles são todos seus. Disse novamente o da direita.
– O que? Mas eu…
– Nada de mais. Você está duas colheitas atrasado. Não aceitamos desculpas. Até amanhã.
E se foram antes que o poeta pudesse dizer qualquer coisa.
– É verdade. Os gêmeos que plantam trigo. Foram eles que o ofereceram um trabalho e um lugar para morar a ti quando perceberam que o moinho só funcionava na sua presença. Incrível que, apesar de serem jovens e órfãos, são adultos o suficiente para cuidar tantos trigos, o suficiente para o vilarejo inteiro. Disse a garota.
– Incrível será eu conseguir colher todos aqueles trigos sozinho.
A garota riu e concordou com ele.
– Realmente todos agem como se nada tivesse acontecido. Ninguém sentiu falta da mim.
– Não é verdade. Apenas sempre soubemos que você voltaria. Mas mesmo assim…
– Mesmo assim o que?
– Nada, pensei alto.
Eles continuaram a caminhar. Almoçaram na casa da garota, como de costume. Arroz, feijão, cordeiro, alface, cenouras, como de costume. Dormiram a sombra da árvore em frente à casa logo após o almoço, como de costume. Brincaram com as crianças na praça, como de costume. Todos pararam e o ouviram contar histórias na praça, como de costume. Ajudou o padeiro a limpar e fechar a padaria, como de costume. Subiram novamente ao telhado do moinho e ficaram a ver o pôr do sol, como de costume. Contaram e desenharam estrelas, como de costume.
– Em algumas cidades que estive quase não se via as estrelas. Disse o poeta.
– Que triste.
– Havia tanta poluição e luzes que até mesmo a lua ficava quase invisível.
– Por isso que voltou? Para ver as estrelas? Pergunta a garota com certo tom sarcástico.
– Voltei porque nada mudou. As pessoas continuam a temer meus olhos e julgar-me por eles. O dinheiro e o desejo ainda falam mais alto que a consciência para mudar hábitos. A guerra e a miséria continuam a ser coisas normais. Voltei porque não encontrei o que procurava.
Uma brisa suave e o som do gemido das engrenagens foram os únicos sons a serem ouvidos por alguns segundos, até ela disser.
– Então fora um ano de viagem inútil?
– Não, conheci lugares e pessoas incríveis também. E descobri o que é realmente importante para mim e onde estava aquilo que procurava. Conheci um piloto no deserto que me disse: “Fora o tempo que perdeste com tua rosa que a fizeste tão importante.”. Eu tive que rodar o mundo para entender isto.
A olhou nos olhos. Olhou profundamente. Nunca havia olhado tão fixamente assim. Silêncio. A garota se perde no mar vermelho sangue dos olhos dele. Silêncio. Olham-se como se trocassem pensamentos. Silêncio. As engrenagens cortam o silêncio gemendo sempre com o mesmo intervalo de tempo.
– Salvaste a minha vida, e como pagamento ficou com o meu coração.
– Não foi um pagamento, foi uma troca. O teu pelo meu.
Seus rostos estão próximos. Mais próximos. Silêncio. Os rostos se afastam um pouco. Eles mantêm os olhos fechados, imóveis, prolongando a sensação do beijo. Novamente, desta vez, mais intenso e longo.
Acorda. Os primeiros raios de sol iluminam o interior do moinho. Silêncio. Engrenagens gemendo. Esta sozinha. O primeiro pensamento que a vem: Foi embora novamente, desta vez para sempre.
Olha em volta. Uma pequena mesa a frente da cama. Pães, leite, margarina, queijo, bolo. Uma rosa azul e um papel completam o café da manha.
[ Neste mundo que se consome,
eu continuarei te amando
hesitando, perdendo, frustrando, lutando
nesta e todas as outras noites que se seguiram
apenas um nome sairá de minha boca ]
Uma lágrima escorre de seu olho. Ele se foi novamente. Ela tem certeza. A dor desta vez é mais forte. O mais belo adeus deixou a mais profunda das feridas. Contêm as lagrimas. Sabia desde o inicio, mas não quis aceitar. A vida voltou ao seu vazio. Pensa em ir para casa. Olha em volta. Vazio. Sobe novamente ao teto do moinho. O sol está um pouco alto. Devia ter dormido bastante. Uma brisa suave balança os avermelhados cabelos. Olha a paisagem. As colinas ao longe. Um pequeno riacho passando um pouco a frente do vilarejo com algumas vacas a beber de sua água. Os campos de trigo dos gêmeos. Olha novamente. Vê uma pessoa a colhê-los. Não se parece com nenhum dos dois gêmeos. Ele acena. É ele. Corre. Quando o encontra o abraça forte.
– Pensei que estivesse partido.
– E porque faria isto? Já rodei o mundo e encontrei aqui o que queria, lembra-se?
– Eu sei, mas… quando acordei e não o vi, pensei que…
– Apenas acordei cedo para colher os trigos. Não queira acordá-la.
Ela ri para esconder as lágrimas. Passa suavemente a mão no rosto da garota. A beija e abraça. Olha para trás dela e ri.
– Ficaste tão afobada que nem reparou que o moinho ainda está a funcionar.
Olha para trás e vê que é verdade. Ela ri novamente. Esta feliz. Sente-se em paz. O ajuda a colher. Um trabalho que levava o dia todo, mas não há problemas, afinal, tens bastante assunto e histórias para contarem.
O moinho girava mesmo sem o menor vento.